O senador Cristovam Buarque é o relator de um projeto polêmico que se propõe a legalizar a maconha no Brasil. Para melhor informar os leitores do blog, convidei alguns amigos para debaterem sobre o tema. O primeiro a escrever foi Anderson Oliveira Silva, formado em biologia e servidor público no estado da Paraíba. Agora a amiga Gislaine Oliveira, doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba, nos brinda com seu ponto de vista sobre o assunto. Agradeço sua valiosa contribuição e desejo a todos uma boa leitura.
Emerson Luiz
Cannabis sativa L.:
um veneno ou uma alternativa a ser considerada?
Gislaine Alves de
Oliveira
Quando Emerson me convidou a preparar este artigo
para o blog “Amo Venturosa” fiquei agradecida pela confiança e feliz em poder
contribuir para a discussão. Sentimento logo substituído pelo desespero (rs)
quando me deparei com o pouco que eu sabia e com a quantidade de informações
disponíveis sobre o assunto. Logo, para poder prestar um bom serviço com
informações precisas e da melhor forma possível, fui pesquisar. Optei por
trazer informações relacionadas à história e à utilidade medicinal desta droga1,
por isso algumas palavras que não utilizamos comumente irão aparecer no texto e
para facilitar a leitura o significado dessas palavras ou expressões estará
descrito logo abaixo do texto.
Dona de muitos nomes, a maconha (nome científico: Cannabis sativa L), marihuana,
marijuana, erva, cânhamo, etc.,
desperta a curiosidade de alguns, o repúdio de outros, mas o que há de verdade
e o que há de mito? Será que faz algum bem ou só faz mal? Vem cá, vamos
descobrir um tiquinho mais.
Uma música pra despertar os sentidos: http://www.youtube.com/watch?v=JRD_Zx-zFgE
Legenda do vídeo: “Maresia, sente a maresia... O Gabriel não tá de todo certo, nem de
todo errado.”
Para que a gente entenda todo o contexto envolvendo
a maconha, precisamos primeiro
entender a sua história no nosso país. Esta planta não é nativa do nosso
território, mas está presente em nosso país desde 1500 quando os portugueses
chegaram aqui, na forma de fibras presentes nas velas e cordames das
embarcações portuguesas. Entretanto, o seu uso como psicotrópico2 no
Brasil só teve início em 1549 quando os escravos trazidos do continente
africano desembarcaram aqui trazendo as sementes da marijuana em bonecas de
pano amarradas nas pontas das suas tangas.
Durante muito tempo o seu consumo foi feito de
forma indiscriminada por escravos, índios e brancos, inclusive com incentivo da
coroa portuguesa. Ao longo dos anos, a medicina nacional recomendava a
utilização da planta na forma de cigarros contra bronquite crônica nas crianças
(!), asma, insônia e tantos outros males.
Ora, se era de uso indiscriminado, o que resultou
no regime que temos hoje?
A partir da década de 1930 a repressão do uso da
maconha no Brasil ganhou força. Provavelmente resultado da postura do delegado
Pernambuco durante a II Conferência Internacional do Ópio (1924), o qual
descreveu a marijuana como mais perigosa que o ópio. Assim, em 1938 a postura
repressiva contra a erva atingiu seu ápice com o Decreto-Lei nº 891 do Governo
Federal que proibia o plantio, cultura, colheita e exploração por particulares
da maconha, em todo o território nacional. Em 1976, a Lei 6.368 previa pena de
prisão para a pessoa que tivesse em seu poder qualquer quantidade de maconha,
mesmo que para uso pessoal. Já em 2006, foi criada a Lei 11.343, a qual em seu
artigo 28 retira a pena de prisão para o usuário. Entretanto, não fica clara a
distinção entre usuário e traficante, sendo de responsabilidade do juiz
enquadrar o cidadão em uma das duas categorias. Para isso o juiz deverá
observar alguns aspectos como: quantidade da substância apreendida, local e
condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem
como a conduta e os antecedentes do agente. Resumindo:
o que der na telha do juiz.
E cá estamos nós, numa sociedade que proibiu a
venda, mas “liberou” o consumo. Se isso não é estimular o tráfico, então o que
é?
À parte toda a história jurídica da marijuana,
temos o seu histórico no campo da saúde. Nesse aspecto, a dita Conferência do
Ópio embaçou a vida não só de quem consumia a maconha, mas também de quem a
estudava, e por isso, o princípio ativo em maior concentração da Cannnabis só
teve a sua estrutura química descoberta em 1964.
Estrutura química do ∆-9-tetraidrocanabinol (THC)
Logo após a descoberta do THC, descobriu-se que o
nosso organismo produz substâncias semelhantes a este, os endocanabinóides (endo = do interior, canabinóides = relativo
à Cannabis). Se o nosso corpo produz essas substâncias, significa dizer que
temos todo um sistema de receptores para elas e efeitos fisiológicos3
relacionados. Esses eventos voltaram os olhares da comunidade científica
novamente para a marijuana e seus derivados, no que diz respeito à saúde.
Em termos numéricos, esse interesse se evidencia
quando é feita uma pesquisa literária sobre o assunto. Utilizando um único portal
de consultas, o PubMed4, pesquisando pelo termo “marijuana”
encontra-se mais de 19.000 artigos publicados. Filtrando esses resultados para
apenas artigos de revisão5 e gratuitos6, encontrei mais
de 300 artigos disponíveis. É muita coisa. Destes selecionei uns 10 e vou
contar pra vocês o que eu achei.
Legenda do vídeo: O velho Willie é adepto. O Snoop
nem se fala.
Antes de discutimos os efeitos do uso de marijuana
na saúde faz-se necessário entender algumas coisas:
1. Existe
diferença entre uso e abuso. Vemos isso em tudo no nosso dia a dia. Sabia que
água demais pode matar? E não estou falando de morte por afogamento. A linha
que divide o uso/abuso da maconha não é clara porque nunca foi estipulado um ou
outro. Existem estudos que mostram que o abuso é caracterizado pelo consumo de cerca
de 4 vezes o que as outras pessoas usam. (Se ele não diz o quanto as pessoas
usam normalmente, não disse nada, né?)
2. Existem
efeitos agudos e crônicos. Agudos são os efeitos imediatos do uso e crônicos,
os efeitos do uso em longo prazo (anos).
3. Há
diferenças entre efeitos físicos e psíquicos. Físicos são os danos causados ao
corpo ou às suas partes. Psíquicos são os efeitos mentais.
Com esses conceitos
em mente, podemos prosseguir.
Alguns efeitos benéficos da marijuana já estão bem
sedimentados no mundo científico, sendo utilizados como uma forma alternativa
de tratamento nos países onde tem seu uso liberado. A maconha é utilizada no
tratamento de:
a) Náuseas
e vômitos, muito comuns em pacientes com câncer que utilizam tratamento
quimioterápico;
b)
Perda de apetite em pacientes portadores de
HIV/AIDS, câncer e anorexia;
c) No
tratamento de esclerose múltipla7 (Alemanha).
Outros efeitos da maconha têm sido estudados e há
relatos de ações anti-inflamatórias, remédio para o tratamento da dor crônica
e/ou neuropática8, contra diarreia, no tratamento de distonia,
artrite reumatoide, glaucoma, epilepsia, aterosclerose, transtorno do estresse
pós-traumático, auxiliar no tratamento do câncer de próstata, e tantos outros.
A maioria desses estudos aponta como principal
responsável por esses efeitos o THC. Entretanto, este também é apontado como o maior
causador dos efeitos colaterais agudos observados no uso da marijuana: cansaço,
tontura, boca seca e sensibilidade aumentada. Com o uso crônico os efeitos
adversos são: insônia, confusão mental, deficiência no sistema imune9,
alterações psicológicas como ansiedade, depressão, comportamento violento,
alteração dos reflexos e tantas outras. Se você achou que os efeitos são
muitos, pesquise rapidamente a bula do Rivotril® e você verá a quantidade de efeitos adversos num dos
psicotrópicos mais vendidos do Brasil.
Pesquisas recentes mostram que outra substância
encontrada na maconha, o canabidiol (CBD), pode ser a arma no contra-ataque dos
efeitos causados pelo THC. Estes estudos mostram que o CBD além de evitar os
efeitos negativos do THC, aumenta a disponibilidade no organismo dos
endocanabinóides, favorecendo dessa forma apenas os efeitos positivos. Aí você
pode me perguntar, então por que não usar apenas o CBD? Bem, pequeno Padawan,
porque nem tudo são flores. Não se sabe ao certo o motivo, mas o CBD só
apresenta seus efeitos benéficos se houver uma ‘perturbação’ no sistema
endocanabinóide, o que só é provocado quando há a ingestão do THC! Os esforços
agora se voltam para identificar qual a concentração ideal de cada um, a fim de
obter mais efeitos benéficos que maléficos, selecionando as variações de
maconha mais ‘saudáveis’ para o uso, seja recreativo ou medicinal.
Muitas e muitas vezes se diz que o uso crônico de
maconha pode causar esquizofrenia. Um estudo de revisão que reuniu 16 artigos
científicos com a intenção de avaliar esse propósito mostrou-se INCONCLUSIVO.
Isto quer dizer que não há evidências científicas suficientes para provar que
as alterações cerebrais encontradas nos pacientes são decorrentes do uso da
maconha, ou provenientes da própria doença, ou ainda dos medicamentos utilizados
no seu tratamento. Entretanto, há provas que o álcool causa perda de massa
cerebral. E, no entanto, continuamos a tomar nossa cerveja/whisky/vodca/cachaça/vinho/etc.
religiosamente todo final de semana, muitas vezes antes da maioridade e sem a
menor preocupação, até “encher a lata”. E aí?
Também é dito que a maconha causa câncer, sendo
pior que o cigarro. Não é de todo verdade. O uso do CIGARRO de marijuana
aumenta o risco de desenvolver câncer das vias aéreas (boca, pulmão, laringe,
faringe, garganta, língua, etc), mas já foi evidenciado que a maconha pode
ajudar a reduzir tumores, a formação dos vasos sanguíneos que nutrem esses
tumores e metástases. Tudo depende da forma como ela é utilizada, já que
existem outras formas, como o spray utilizado na Alemanha. Em contrapartida
temos o cigarro convencional com a venda liberada, e ao contrário da maconha,
não conheço nenhum artigo que mostre qualquer efeito benéfico que seja.
E agora?
Você pode dizer: __Mas Gislaine, existe o risco de
câncer, CÂNCER, essa doença que destrói tantas vidas, que ainda não tem cura,
que acaba com a qualidade de vida dos que sofrem dela.
É tudo verdade.
Sabe que medicamento tem venda livre e
indiscriminada no mercado, pode ser obtido no posto de saúde sem passar por
consulta médica e também dá câncer? A PÍLULA DO DIA SEGUINTE! Este medicamento,
assim como qualquer anticoncepcional oral, é nada mais nada menos que hormônio
puro. E como qualquer hormônio, se tomado a longo prazo, pode resultar em câncer.
Se não acredita, basta ler a bula do seu anticoncepcional. Isso significa dizer
que todas as mulheres que usam desse medicamento na prevenção de uma gravidez
indesejada irão desenvolver câncer? Claro que não! Mas existe o risco.
Ainda diz-se que o uso da maconha acarreta
diminuição da capacidade de reter o conhecimento, a chamada perda de memória em
curto prazo e déficit cognitivo. Ainda existem dúvidas quanto a isso, mas de
fato, o que todos os estudos recomendam é que não haja consumo de maconha por
menores de 18 anos, a fim de não comprometer a vida escolar. Acontece que não
conseguimos garantir o não-acesso dos
adolescentes ao álcool, como poderíamos garantir o não acesso à maconha? Em
contrapartida, que traficante pede documento?
Que coisa não?
O argumento mais falho em favor da liberação da
maconha, talvez seja: se é natural não faz mal! Vejam bem, assim como existem
plantas que ajudam a curar, existem plantas que matam. Mesmo as plantas que
fazem bem, como o boldo que tanto se usa pra ajudar o fígado a sair daquela
ressaca, podem fazer mal, pois o mesmo boldo pode causar aborto. Fora
consequências em longo prazo do uso de chás muito concentrados, ou com grande
frequência que podem causar danos a fígado e rins.
Diante de todos esses fatos aqui apresentados, eu
só posso ter uma opinião: precisamos refletir a respeito. Não adianta termos
respostas definitivas em nossas cabeças porque o assunto não é assim tão
simples. Outros aspectos, que não os relacionados à saúde, devem ser analisados
e colocados em uma balança. Talvez liberar o uso da marijuana por pacientes
onde as alternativas convencionais não deram resultado seja o primeiro passo.
Abaixo vai uma seleção de links para leitura e análise.
Citando um amigo: “a proibição é um problema, mas
não tenho certeza de que a legalização seja a solução”.
Termos utilizados e outras explicações:
1. Drogas:
o termo aqui não se refere às drogas ilícitas, mas sim ao seu real significado.
Portanto, drogas são tudo aquilo de origem vegetal, animal ou mineral, ou seus
derivados, que possam servir de matéria-prima bruta para a obtenção de
substâncias medicamentosas, ou mesmo de substâncias que não possuindo atividade
farmacológica, ainda assim seja de interesse farmacêutico.
2.
Substância de efeito psicotrópico é aquela que
atua de forma a modificar, ainda que temporariamente, o comportamento, humor e
cognição.
3.
Fisiológicos: Relacionado ao próprio corpo. Por
exemplo, a função fisiológica do olho é enxergar.
4.
Portal de consultas, exemplo PubMed: são sites
especializados em consultas de artigos científicos. Alguns portais são
direcionados apenas para determinada editora, por isso o ideal é consultar
vários portais.
5.
Artigos de revisão: como o próprio nome diz,
esse tipo de artigo tem como função reunir o maior número de informações
possíveis a respeito de determinado assunto e gerar um apanhado final a
respeito. Eles existem para facilitar a vida do pesquisador, já que o mesmo
tema pode ser objeto de estudo de vários grupos mundo a fora.
6.
Artigos grátis: como a maioria das revistas é
gratuita para o pesquisador publicar, a leitura desses artigos é paga. Hoje em
dia, algumas revistas cobram (e caro!) do pesquisador para a publicação dos
seus dados a fim de que a leitura por outros seja gratuita.
7.
Esclerose múltipla: doença caracteriza pela
perda de função progressiva. A maconha nesse caso é utilizada para diminuir a
rigidez muscular característica da doença.
8.
Dor neuropática: dor de origem no nervo.
Geralmente é causada por uma desregulação do sistema de dor do sujeito.
9. Sistema
Imune: é o responsável por nos ajudar a combater qualquer organismo estranho ao
nosso, por exemplo: vírus, bactérias, protozoários, entre outros.
Links bacanudos:
Gislaine Alves de
Oliveira: Eterna filha de Givaldo e Dulce da lanchonete tornou-se farmacêutica
pela Universidade Federal da Paraíba (2010), obtendo o título de Mestre pela
mesma instituição em 2013. Atualmente faz Doutorado também pela UFPB, atuando
na área de Biotecnologia da hipertensão arterial e do estresse oxidativo. Uma
prolixa incorrigível. Em tempos de dieta alimenta o blog www.avidaepeso.blogspot.com.br.
Muito bom! deveria ser mostrado em horário de novelas.
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