quinta-feira, 6 de março de 2014

ARTIGO ESPECIAL SOBRE LEGALIZAÇÃO DA MACONHA NO BRASIL - GISLAINE OLIVEIRA

O senador Cristovam Buarque é o relator de um projeto polêmico que se propõe a legalizar a maconha no Brasil. Para melhor informar os leitores do blog, convidei alguns amigos para debaterem sobre o tema. O primeiro a escrever foi Anderson Oliveira Silva, formado em biologia e servidor público no estado da Paraíba. Agora a amiga Gislaine Oliveira, doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba, nos brinda com seu ponto de vista sobre o assunto. Agradeço sua valiosa contribuição e desejo a todos uma boa leitura.

Emerson Luiz

Cannabis sativa L.: 
um veneno ou uma alternativa a ser considerada?


Gislaine Alves de Oliveira


Quando Emerson me convidou a preparar este artigo para o blog “Amo Venturosa” fiquei agradecida pela confiança e feliz em poder contribuir para a discussão. Sentimento logo substituído pelo desespero (rs) quando me deparei com o pouco que eu sabia e com a quantidade de informações disponíveis sobre o assunto. Logo, para poder prestar um bom serviço com informações precisas e da melhor forma possível, fui pesquisar. Optei por trazer informações relacionadas à história e à utilidade medicinal desta droga1, por isso algumas palavras que não utilizamos comumente irão aparecer no texto e para facilitar a leitura o significado dessas palavras ou expressões estará descrito logo abaixo do texto.
Dona de muitos nomes, a maconha (nome científico: Cannabis sativa L), marihuana, marijuana, erva, cânhamo, etc., desperta a curiosidade de alguns, o repúdio de outros, mas o que há de verdade e o que há de mito? Será que faz algum bem ou só faz mal? Vem cá, vamos descobrir um tiquinho mais.
Uma música pra despertar os sentidos: http://www.youtube.com/watch?v=JRD_Zx-zFgE

Legenda do vídeo: “Maresia, sente a maresia... O Gabriel não tá de todo certo, nem de todo errado.”
Para que a gente entenda todo o contexto envolvendo a maconha, precisamos primeiro entender a sua história no nosso país. Esta planta não é nativa do nosso território, mas está presente em nosso país desde 1500 quando os portugueses chegaram aqui, na forma de fibras presentes nas velas e cordames das embarcações portuguesas. Entretanto, o seu uso como psicotrópico2 no Brasil só teve início em 1549 quando os escravos trazidos do continente africano desembarcaram aqui trazendo as sementes da marijuana em bonecas de pano amarradas nas pontas das suas tangas.
Durante muito tempo o seu consumo foi feito de forma indiscriminada por escravos, índios e brancos, inclusive com incentivo da coroa portuguesa. Ao longo dos anos, a medicina nacional recomendava a utilização da planta na forma de cigarros contra bronquite crônica nas crianças (!), asma, insônia e tantos outros males.



Ora, se era de uso indiscriminado, o que resultou no regime que temos hoje?

A partir da década de 1930 a repressão do uso da maconha no Brasil ganhou força. Provavelmente resultado da postura do delegado Pernambuco durante a II Conferência Internacional do Ópio (1924), o qual descreveu a marijuana como mais perigosa que o ópio. Assim, em 1938 a postura repressiva contra a erva atingiu seu ápice com o Decreto-Lei nº 891 do Governo Federal que proibia o plantio, cultura, colheita e exploração por particulares da maconha, em todo o território nacional. Em 1976, a Lei 6.368 previa pena de prisão para a pessoa que tivesse em seu poder qualquer quantidade de maconha, mesmo que para uso pessoal. Já em 2006, foi criada a Lei 11.343, a qual em seu artigo 28 retira a pena de prisão para o usuário. Entretanto, não fica clara a distinção entre usuário e traficante, sendo de responsabilidade do juiz enquadrar o cidadão em uma das duas categorias. Para isso o juiz deverá observar alguns aspectos como: quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente. Resumindo: o que der na telha do juiz.
E cá estamos nós, numa sociedade que proibiu a venda, mas “liberou” o consumo. Se isso não é estimular o tráfico, então o que é?
À parte toda a história jurídica da marijuana, temos o seu histórico no campo da saúde. Nesse aspecto, a dita Conferência do Ópio embaçou a vida não só de quem consumia a maconha, mas também de quem a estudava, e por isso, o princípio ativo em maior concentração da Cannnabis só teve a sua estrutura química descoberta em 1964.



Estrutura química do ∆-9-tetraidrocanabinol (THC)

Logo após a descoberta do THC, descobriu-se que o nosso organismo produz substâncias semelhantes a este, os endocanabinóides (endo = do interior, canabinóides = relativo à Cannabis). Se o nosso corpo produz essas substâncias, significa dizer que temos todo um sistema de receptores para elas e efeitos fisiológicos3 relacionados. Esses eventos voltaram os olhares da comunidade científica novamente para a marijuana e seus derivados, no que diz respeito à saúde.
Em termos numéricos, esse interesse se evidencia quando é feita uma pesquisa literária sobre o assunto. Utilizando um único portal de consultas, o PubMed4, pesquisando pelo termo “marijuana” encontra-se mais de 19.000 artigos publicados. Filtrando esses resultados para apenas artigos de revisão5 e gratuitos6, encontrei mais de 300 artigos disponíveis. É muita coisa. Destes selecionei uns 10 e vou contar pra vocês o que eu achei.



Legenda do vídeo: O velho Willie é adepto. O Snoop nem se fala.

Antes de discutimos os efeitos do uso de marijuana na saúde faz-se necessário entender algumas coisas:
1.       Existe diferença entre uso e abuso. Vemos isso em tudo no nosso dia a dia. Sabia que água demais pode matar? E não estou falando de morte por afogamento. A linha que divide o uso/abuso da maconha não é clara porque nunca foi estipulado um ou outro. Existem estudos que mostram que o abuso é caracterizado pelo consumo de cerca de 4 vezes o que as outras pessoas usam. (Se ele não diz o quanto as pessoas usam normalmente, não disse nada, né?)
2.       Existem efeitos agudos e crônicos. Agudos são os efeitos imediatos do uso e crônicos, os efeitos do uso em longo prazo (anos).
3.       Há diferenças entre efeitos físicos e psíquicos. Físicos são os danos causados ao corpo ou às suas partes. Psíquicos são os efeitos mentais.
Com esses conceitos em mente, podemos prosseguir.

                Alguns efeitos benéficos da marijuana já estão bem sedimentados no mundo científico, sendo utilizados como uma forma alternativa de tratamento nos países onde tem seu uso liberado. A maconha é utilizada no tratamento de:
a)      Náuseas e vômitos, muito comuns em pacientes com câncer que utilizam tratamento quimioterápico;
b)      Perda de apetite em pacientes portadores de HIV/AIDS, câncer e anorexia;
c)       No tratamento de esclerose múltipla7 (Alemanha).

Outros efeitos da maconha têm sido estudados e há relatos de ações anti-inflamatórias, remédio para o tratamento da dor crônica e/ou neuropática8, contra diarreia, no tratamento de distonia, artrite reumatoide, glaucoma, epilepsia, aterosclerose, transtorno do estresse pós-traumático, auxiliar no tratamento do câncer de próstata, e tantos outros.
A maioria desses estudos aponta como principal responsável por esses efeitos o THC. Entretanto, este também é apontado como o maior causador dos efeitos colaterais agudos observados no uso da marijuana: cansaço, tontura, boca seca e sensibilidade aumentada. Com o uso crônico os efeitos adversos são: insônia, confusão mental, deficiência no sistema imune9, alterações psicológicas como ansiedade, depressão, comportamento violento, alteração dos reflexos e tantas outras. Se você achou que os efeitos são muitos, pesquise rapidamente a bula do Rivotril® e você verá a quantidade de efeitos adversos num dos psicotrópicos mais vendidos do Brasil.
Pesquisas recentes mostram que outra substância encontrada na maconha, o canabidiol (CBD), pode ser a arma no contra-ataque dos efeitos causados pelo THC. Estes estudos mostram que o CBD além de evitar os efeitos negativos do THC, aumenta a disponibilidade no organismo dos endocanabinóides, favorecendo dessa forma apenas os efeitos positivos. Aí você pode me perguntar, então por que não usar apenas o CBD? Bem, pequeno Padawan, porque nem tudo são flores. Não se sabe ao certo o motivo, mas o CBD só apresenta seus efeitos benéficos se houver uma ‘perturbação’ no sistema endocanabinóide, o que só é provocado quando há a ingestão do THC! Os esforços agora se voltam para identificar qual a concentração ideal de cada um, a fim de obter mais efeitos benéficos que maléficos, selecionando as variações de maconha mais ‘saudáveis’ para o uso, seja recreativo ou medicinal.
Muitas e muitas vezes se diz que o uso crônico de maconha pode causar esquizofrenia. Um estudo de revisão que reuniu 16 artigos científicos com a intenção de avaliar esse propósito mostrou-se INCONCLUSIVO. Isto quer dizer que não há evidências científicas suficientes para provar que as alterações cerebrais encontradas nos pacientes são decorrentes do uso da maconha, ou provenientes da própria doença, ou ainda dos medicamentos utilizados no seu tratamento. Entretanto, há provas que o álcool causa perda de massa cerebral. E, no entanto, continuamos a tomar nossa cerveja/whisky/vodca/cachaça/vinho/etc. religiosamente todo final de semana, muitas vezes antes da maioridade e sem a menor preocupação, até “encher a lata”. E aí?
Também é dito que a maconha causa câncer, sendo pior que o cigarro. Não é de todo verdade. O uso do CIGARRO de marijuana aumenta o risco de desenvolver câncer das vias aéreas (boca, pulmão, laringe, faringe, garganta, língua, etc), mas já foi evidenciado que a maconha pode ajudar a reduzir tumores, a formação dos vasos sanguíneos que nutrem esses tumores e metástases. Tudo depende da forma como ela é utilizada, já que existem outras formas, como o spray utilizado na Alemanha. Em contrapartida temos o cigarro convencional com a venda liberada, e ao contrário da maconha, não conheço nenhum artigo que mostre qualquer efeito benéfico que seja.
E agora?
Você pode dizer: __Mas Gislaine, existe o risco de câncer, CÂNCER, essa doença que destrói tantas vidas, que ainda não tem cura, que acaba com a qualidade de vida dos que sofrem dela.
É tudo verdade.
Sabe que medicamento tem venda livre e indiscriminada no mercado, pode ser obtido no posto de saúde sem passar por consulta médica e também dá câncer? A PÍLULA DO DIA SEGUINTE! Este medicamento, assim como qualquer anticoncepcional oral, é nada mais nada menos que hormônio puro. E como qualquer hormônio, se tomado a longo prazo, pode resultar em câncer. Se não acredita, basta ler a bula do seu anticoncepcional. Isso significa dizer que todas as mulheres que usam desse medicamento na prevenção de uma gravidez indesejada irão desenvolver câncer? Claro que não! Mas existe o risco.
Ainda diz-se que o uso da maconha acarreta diminuição da capacidade de reter o conhecimento, a chamada perda de memória em curto prazo e déficit cognitivo. Ainda existem dúvidas quanto a isso, mas de fato, o que todos os estudos recomendam é que não haja consumo de maconha por menores de 18 anos, a fim de não comprometer a vida escolar. Acontece que não conseguimos garantir o não-acesso dos adolescentes ao álcool, como poderíamos garantir o não acesso à maconha? Em contrapartida, que traficante pede documento?


Que coisa não?


O argumento mais falho em favor da liberação da maconha, talvez seja: se é natural não faz mal! Vejam bem, assim como existem plantas que ajudam a curar, existem plantas que matam. Mesmo as plantas que fazem bem, como o boldo que tanto se usa pra ajudar o fígado a sair daquela ressaca, podem fazer mal, pois o mesmo boldo pode causar aborto. Fora consequências em longo prazo do uso de chás muito concentrados, ou com grande frequência que podem causar danos a fígado e rins.
Diante de todos esses fatos aqui apresentados, eu só posso ter uma opinião: precisamos refletir a respeito. Não adianta termos respostas definitivas em nossas cabeças porque o assunto não é assim tão simples. Outros aspectos, que não os relacionados à saúde, devem ser analisados e colocados em uma balança. Talvez liberar o uso da marijuana por pacientes onde as alternativas convencionais não deram resultado seja o primeiro passo. Abaixo vai uma seleção de links para leitura e análise.
Citando um amigo: “a proibição é um problema, mas não tenho certeza de que a legalização seja a solução”.

Termos utilizados e outras explicações:

1.       Drogas: o termo aqui não se refere às drogas ilícitas, mas sim ao seu real significado. Portanto, drogas são tudo aquilo de origem vegetal, animal ou mineral, ou seus derivados, que possam servir de matéria-prima bruta para a obtenção de substâncias medicamentosas, ou mesmo de substâncias que não possuindo atividade farmacológica, ainda assim seja de interesse farmacêutico.
2.       Substância de efeito psicotrópico é aquela que atua de forma a modificar, ainda que temporariamente, o comportamento, humor e cognição.
3.       Fisiológicos: Relacionado ao próprio corpo. Por exemplo, a função fisiológica do olho é enxergar.
4.       Portal de consultas, exemplo PubMed: são sites especializados em consultas de artigos científicos. Alguns portais são direcionados apenas para determinada editora, por isso o ideal é consultar vários portais.
5.       Artigos de revisão: como o próprio nome diz, esse tipo de artigo tem como função reunir o maior número de informações possíveis a respeito de determinado assunto e gerar um apanhado final a respeito. Eles existem para facilitar a vida do pesquisador, já que o mesmo tema pode ser objeto de estudo de vários grupos mundo a fora.
6.       Artigos grátis: como a maioria das revistas é gratuita para o pesquisador publicar, a leitura desses artigos é paga. Hoje em dia, algumas revistas cobram (e caro!) do pesquisador para a publicação dos seus dados a fim de que a leitura por outros seja gratuita.
7.       Esclerose múltipla: doença caracteriza pela perda de função progressiva. A maconha nesse caso é utilizada para diminuir a rigidez muscular característica da doença.
8.       Dor neuropática: dor de origem no nervo. Geralmente é causada por uma desregulação do sistema de dor do sujeito.
9.       Sistema Imune: é o responsável por nos ajudar a combater qualquer organismo estranho ao nosso, por exemplo: vírus, bactérias, protozoários, entre outros.

Links bacanudos:
2.       http://smkbd.com/



Gislaine Alves de Oliveira: Eterna filha de Givaldo e Dulce da lanchonete tornou-se farmacêutica pela Universidade Federal da Paraíba (2010), obtendo o título de Mestre pela mesma instituição em 2013. Atualmente faz Doutorado também pela UFPB, atuando na área de Biotecnologia da hipertensão arterial e do estresse oxidativo. Uma prolixa incorrigível. Em tempos de dieta alimenta o blog www.avidaepeso.blogspot.com.br.



Um comentário:

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