Uma crônica sobre jovens, educação pública e a nossa sociedade.
Foi numa manhã
de terça-feira. O ônibus parou próximo a uma padaria e eu me preparei para mais
um dia de trabalho. O material das aulas pronto e as falas repassadas na
memória. Ainda me sinto incomodado com as cobranças excessivas da rede
estadual, o discurso pomposo de nossos governantes e o
descaso histórico da União, do estado e do município com a educação. Mas, quando
abraçamos uma causa devemos dar o nosso máximo e não nos deter por conta das
enormes montanhas a serem contornadas.
Sempre gostei
de pensar que estava me dedicando ao máximo e que já tinha colecionado algumas
vitórias enquanto educador. Uma certa vaidade me acometia quando olhava as
fotos dos projetos premiados e do material produzido com os alunos. Era hábito
meu dizer: Estou me esforçando todos os
dias para fazer a minha parte. Não é o que sempre fazemos? Adaptar nossa
mente para tentar, nem sempre com sucesso, conseguir bons resultados em nosso
trabalho?
Então o vi com
uma caixa de madeira presa ao ombro por o que de longe pareceu ser um pedaço de
couro. A caixa de engraxate não foi o que mais chamou minha atenção, mas a
expressão abatida e cansada, que deveriam estar no rosto de alguém que já viveu
uma longa vida, numa face sem esperanças de um jovem que mal iniciou sua jornada.
E logo nessa
semana, onde numa aula para jovens do nono ano havia dito de forma tão
entusiasta: “O perfil do Brasil mudou e nosso estado é um dos que mais cresce
no país. Estamos num estágio onde a educação é a força propulsora do futuro! Se
dediquem aos estudos e esse futuro estará nas mãos de vocês.” Falávamos sobre o
mundo globalizado, desemprego estrutural e tecnológico e os desafios da
sociedade contemporânea em uma aula de Geografia.
Dizem que "as palavras nos traem". Espero me fazer ser compreendido com o que pretendo comunicar. Nada tenho contra a profissão de engraxate, o trabalho dignifica o homem e eleva o seu espírito. Não carrego comigo quaisquer preconceitos de classe, etnia ou gênero, mas acalanto a esperança que a missão da educação é libertar o ser humano e proporcionar seu crescimento espiritual, intelectual e material. Mas, por vários fatores que ultrapassam o exercício do magistério, a educação no Brasil tem uma dívida histórica para com o povo.
Aquele jovem
engraxate fora um dos meus primeiros alunos, quando trabalhei como oficineiro
do programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI em Venturosa. Na época
eu tinha 18 anos e o programa se destinava a atividades lúdicas e reforço
escolar. Lembro que ele cursava a quarta série em uma escola pública municipal
e não sabia ler nem escrever corretamente. Eu ainda não havia ingressado na
faculdade e nada sabia sobre didática ou qualquer estratégia para alfabetizar
ou formar leitores. Talvez poucos dos meus colegas oficineiros (posteriormente
chamados de monitores) tivessem esse compromisso no início de suas atividades. No PETI daquela época a ênfase
era dada a trabalhos de Artes, atividades envolvendo esportes e eventos. Quem
mais se destacou nesse período foi o amigo José Jorge, um grande arte-educador
que levou suas experiências para o programa e tornou a turma da comunidade Ouro
Branco/ Lagoa do Pé de Serra referência em Venturosa, não apenas
em atividades culturais ou esportivas, mas no próprio reforço escolar. Com o tempo, sob a orientação de Luís Bispo, o programa ganhou forma e muitos trabalhos excelentes surgiram, mas o aluno em questão não desfrutou desse progresso.
Atuei na
comunidade da Boa Vista e dentro das minhas limitações de jovem me esforcei para fazer
um bom trabalho. Hoje vejo quantos erros cometi sozinho, e quantos cometi em conjunto.
Posso me responsabilizar ou apontar culpados no programa pela dura vida desse jovem hoje? Não. Sou professor e
não redentor de uma nação. Sou um educador como tantos outros, e não o salvador
da pátria munido de pincel atômico e apostilas.
Mas devo pensar no que ocorre quando fracassamos. Não falo enquanto
professor, porque é sempre fácil dizer que o professor não dá o máximo, não se
dedica, já ganha demais, não está comprometido com a educação e todas as outras
baboseiras do discurso demagógico dos que comandam o processo. Até hoje algumas
escolas funcionam em situações precárias, professores são mal remunerados e o
material de trabalho está longe de ser o ideal. Até hoje verbas da educação são mal empregadas – quando não desviadas –
em muitos municípios brasileiros e a população prefere ignorar a contestar o
modelo de governança a que é submetida.
No tocante a esse jovem (e a tantos com histórias semelhantes) fracassamos
enquanto sociedade. Jovens que vivem em uma família desestruturada, vítimas da omissão do Estado, vivem em precárias condições e não têm acesso a uma boa
moradia, educação de qualidade – passam por todo Ensino Fundamental I e II e leem e escrevem com muita
dificuldade – introvertidos, violentos quando questionados e desestimulados pela dura realidade a que são submetidos. Hoje muitos jovens são um
reflexo do país que as estatísticas, os políticos e o nosso ufanismo de nação
emergente querem ignorar.
Fracassamos
com o jovem engraxate e com milhões de brasileiros. A prova disso é o debate sobre a redução
da maioridade penal para dezesseis anos e nenhuma mobilização para melhorarmos
a segurança pública, os serviços de saúde, o acesso a bens imateriais como a
cultura e a reformulação de toda a nossa educação pública, onde o Senador Cristovam Buarque é um dos grandes baluartes.
Fracassamos ao
curvar nossas cabeças diante da elite raivosa e com medo por ter que dividir
seus espaços com a classe emergente, por ter que dividir as cadeiras das
faculdades com os filhos dos trabalhadores e que se nega a pensar um país
organizado em função do seu povo e não dela mesma. Fracassamos ao abandonar
nossa cultura tão rica e variada para consumir apenas o que é produto de
consumo, sem qualidade, emoção ou criticidade alguma. Uma pseudoarte que nada
agrega, apenas rotula e torna caricata grande parte de nossa gente.
O que fazer
quando fracassamos? Além de não se desesperar e deixar que o pessimismo nuble
nossa percepção é necessário recomeçar. Mas recomeçar do jeito certo.
Emerson Luiz
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