terça-feira, 28 de agosto de 2012

Caminhando sob a lua

Este é o primeiro conto que disponibilizo aqui no blog. É uma pretensa história de horror, sutil e com algumas limitações. Curtam e, se for de agrado, compartilhem. Só peço que a autoria seja mantida já que este é mais uma forma de divulgar meu trabalho.

Emerson Luiz




O SONHO o atormentou por várias noites. Nele, o homem deixara de ser adulto e voltara a ser uma criança frágil e indefesa assolado pela enfermidade. Voltara ao mesmo quarto abafado com janelas sempre fechadas. A mulher também retornara. O cheiro da morte impregnado nela. Olhos vazios de sentido como que a razão tivesse abandonado o frágil terreno de seus pensamentos.
Há muito tempo ele julgara que aquela mulher era responsável por sua doença. Ela o mantinha cativo em casa, preso numa maldita cama. Ela, a velha mulher triste e louca, aproximava-se dele sempre com cuidado para desatar o nó que prendia sua mão direita à cama e entregar-lhe uma colher. Uma sopa rala de legumes e um pão, era o que comia. Isso ocorria sempre em um período específico de dias. Nos outros ele podia caminhar pelo quarto. Uma algema presa à uma corrente ligada a uma haste de ferro maciço num canto da parede estava no seu calcanhar direito e permitia que ele caminhasse um pouco sem que nunca chegasse muito perto da porta. A alimentação variava nesses dias, mas nunca era consistente o suficiente para que ele se sentisse forte ou saldável.
Era a recordação de uma realidade há muito vivida. Naqueles tempos ele tinha sonhos de liberdade e sonhos de morte. Em algumas noites sonhava que uma força incomum invadia seu corpo e ele era capaz de correr tão rápido quanto o animal mais rápido. Sentia sempre o gosto de sangue e carne fresca em sua boca e o medo o abandonava. Quando acordava estava sempre suado, os nós apertados cortavam sua pele causando sangramentos e dor.
Ele lutava para lembrar seu nome e depois começava a chorar.
Numa noite qualquer, porque ele nunca sabia dizer como o tempo passava, não distinguia os dias da semana ou a passagem dos meses, tudo era igual quando se passava todo o tempo deitado, preso à uma cama, ele escapou. Já era quase um rapaz quando ocorreu. Sonhou com a lua cheia, enorme naquele céu escuro de Agosto. Acordou no meio do sonho e olhou fixamente para a janela fechada que ele sabia existir por trás daquela cortina. O quarto era um breu completo, mas ele a sentia, sabia que estava ali, chamando-o, convidando-o a liberdade.
Um calor sem precedentes invadiu seu corpo. Seu sangue parecia ferver nas veias enquanto o coração acelerou seus batimentos. O menino que agora era quase um rapaz gritava com a dor que irradiava de todos os seus membros. Sentia os ossos quebrarem e voltarem a se unir para em seguida quebrarem de novo. Pelos nasciam em suas orelhas, pés e mãos e começavam a se espalhar por toda a extensão do seu corpo. Os seus gritos se tornavam mais altos e não mais se pareciam com nada humano.
Toda a raiva que ele sentia da mulher que o aprisionara desde o tempo em que ele era capaz de lembrar estava prestes a ser liberada. O gosto de sangue invadiu sua boca e se esvaiu rapidamente deixando uma terrível sede. Novos aromas invadiam suas narinas que eram dilatadas enquanto mandíbula a maxilar se projetavam para a frente e seus dentes se convertiam em presas salientes.
Podia farejar a carne da velha mulher, ouvir seu frágil coração descompassado e sentir junto a isso o doce aroma do medo. Uivou saldando à lua e a fome assassina, recebendo aquilo que ainda não sabia ser a sua maldição.
Quando acordou no dia seguinte estava deitado sobre um túmulo. Seu corpo nu tremia coberto pelo orvalho da manhã. Assim que conseguiu lembrar do seu nome procurou recordar de como havia chegado ali, mas não conseguiu. Furtou roupas que estavam penduradas em um varal numa casa próxima. Surpreendeu-se com a força e a saúde do seu corpo e jamais procurou voltar para o lugar de onde havia saído. Passou a perambular pelas ruas e mendigar por comida.
Durante um mês sonhou com a velha. Ouvia seus gritos enquanto um lobo enorme saltava por cima dela e cerrava sua garganta com os dentes. O sangue jorrava e suas mãos débeis tentavam, em vão, afastar a criatura.
Encontrou outros jovens nas ruas e passou a cometer pequenos furtos em sua companhia. Não falava muito, apenas ouvia o que eles diziam. Havia passado tanto tempo calado que pensou não mais saber conversar com quem quer que seja. A maldita velha quase roubara a sua humanidade.
Perambulavam pelas ruas durante o dia e a noite dormiam num prédio abandonado perto do ferro velho.  Foi assim até a lua cheia.
O quase rapaz acordou nu novamente. Desta vez, próximo a um rio. Não mais sonhou com a velha. Seu sono agora era assombrado por garotos correndo. Seu choro rompia o silêncio da noite enquanto, um a um, eram abatidos pela besta. Um lobo enorme, negro como as profundezas da noite, sedento de sangue.
Aquilo o assustou. Mais uma vez ele teve de se esconder até encontrar (roubar) novas roupas. Andando por uma cidade que ele não conhecia e se perguntando como havia chegado ali soube o que era o verdadeiro terror ao passar defronte a uma banca de jornal e ver a fotografia dos seus companheiros. Ele nunca aprendera a ler, mas sabia que era uma má notícia. O jornaleiro comentou com um homem gordo que comprava cigarros: “Nunca vi nada igual. Que monstro seria capaz de estripar seis crianças?”.
Em seu íntimo ele soube.
Voltou para perto do rio e começou a falar sozinho. Prestou atenção no som da própria voz. Era capaz de conversar com os outros e tinha de ser capaz de aprender. Sentiu que merecia ser punido mas não queria morrer. Ele não tinha culpa.
E o rapaz aprendeu. Cometeu pequenos furtos que iam de relógios à bolsas femininas e carteiras. Não gastava muito dinheiro nem ficava muito tempo no mesmo lugar. Escondia o dinheiro enterrado sob árvores perto das estradas e todo mês mudava de cidade, sempre em direção ao interior.
Todos os meses os sonhos mudavam. Sonhou com um casal namorando em um carro, um zelador, um vigia noturno, dois adolescentes puxando um baseado, um bêbado dormindo em uma rodoviária, uma linda jovem chorando com o coração partido.
E o jovem se tornou homem. Um belo homem, de corpo forte e atlético. Ele nunca adoecia ou se sentia cansado. Deixou de roubar. Com o dinheiro comprou produtos que podiam ser revendidos de cidade em cidade. Percebeu que precisava aprender a ler. Uma tarefa difícil, mas o governo queria acabar com os analfabetos e toda cidade tinha um curso noturno de letramento. Pessoas como o mínimo de instrução se candidatavam à vaga de emprego de professor e não exigiam documentos daqueles que desejavam engrossar o número de suas parcas turmas. E ele frequentou várias delas enquanto vendia escovas de cabelo, óculos de sol, polidores de alumínio, perfumes baratos e fotos de artistas famosos de porta em porta. Seus lucros aumentaram quando encontrou o seu mais estrondoso sucesso: a Bíblia com capa de letras douradas e uma mensagem do Pastor Daniel Collins, um famoso pregador do rádio.  Citava as escrituras para donas de casa e lhes dava o seu mais encantador sorriso regado ao brilho dos seus olhos azuis. Vez ou outra dava a elas mais do que isso: um motivo para rezar pedindo o perdão para sua luxúria.
Depois de muito pensar concebeu um meio de fixar moradia. Escolheu uma pequena cidade do interior e com sua experiência como vendedor se candidatou a um emprego numa fábrica local. Nas noites de lua cheia ele sempre estava fora. Orientou suas ações pelo calendário lunar e sempre se dirigia a lugares isolados. Ninguém chamava repórteres ou policiais quando uma vaca ou uma ovelha eram estraçalhadas.
E o agora homem enamorou-se por uma bela jovem chamada Elizabeth. Ela anunciou que estava grávida e a velha voltou a atormentar seus sonhos.
_ A maldição vai adiante com a sua semente, Michael. Ele matará sua mãe assim como você matou a sua.
 O que fazer? Ele procurou livros, buscou conhecimento, mas tudo que encontrou foi folclore. Suas lembranças eram inconsistentes e vagas, gerando dúvidas e interpretações: Onde estaria seu pai nunca conhecido? Será que o pai que nunca conheceu  tirou a própria vida? Ele deveria cometer suicídio? E a criança? Como continuar seu segredo após o nascimento de outro amaldiçoado?
Certa vez ouviu em algum lugar que o amor era uma ilusão. Uma fantasia criada para embelezar o natural instinto de preservação e perpetuação da espécie. As lágrimas que começaram a surgir em seus olhos sumiram quando ele disse a si mesmo: A autopreservação  supera a perpetuação.
Elizabeth dormia ao seu lado, exausta após horas de amor intenso e selvagem, esboçando o sorriso dos que sonham com dias felizes. Michael alugara a cabana por uma semana em nome do senhor Wilson Smith, morto há dois anos. Estavam no alto da montanha, longe de tudo e de todos. O sol estava se pondo e o céu ganhava um tom de laranja enquanto as primeiras estrelas podiam ser vistas. Em breve a grande lua estaria no auge do seu esplendor. Michael sentia vontade de uivar enquanto começava a salivar a lembrança do gosto de sangue já começava a preencher sua boca.

Caetano, 03 de junho de 2012.




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