Emerson Luiz
O SONHO o atormentou por várias noites. Nele,
o homem deixara de ser adulto e voltara a ser uma criança frágil e indefesa
assolado pela enfermidade. Voltara ao mesmo quarto abafado com janelas sempre
fechadas. A mulher também retornara. O cheiro da morte impregnado nela. Olhos
vazios de sentido como que a razão tivesse abandonado o frágil terreno de seus
pensamentos.
Há muito tempo ele julgara que aquela mulher
era responsável por sua doença. Ela o mantinha cativo em casa, preso numa
maldita cama. Ela, a velha mulher triste e louca, aproximava-se dele sempre com
cuidado para desatar o nó que prendia sua mão direita à cama e entregar-lhe uma
colher. Uma sopa rala de legumes e um pão, era o que comia. Isso ocorria sempre
em um período específico de dias. Nos outros ele podia caminhar pelo quarto.
Uma algema presa à uma corrente ligada a uma haste de ferro maciço num canto da
parede estava no seu calcanhar direito e permitia que ele caminhasse um pouco
sem que nunca chegasse muito perto da porta. A alimentação variava nesses dias,
mas nunca era consistente o suficiente para que ele se sentisse forte ou
saldável.
Era a recordação de uma realidade há muito
vivida. Naqueles tempos ele tinha sonhos de liberdade e sonhos de morte. Em
algumas noites sonhava que uma força incomum invadia seu corpo e ele era capaz de
correr tão rápido quanto o animal mais rápido. Sentia sempre o gosto de sangue
e carne fresca em sua boca e o medo o abandonava. Quando acordava estava sempre
suado, os nós apertados cortavam sua pele causando sangramentos e dor.
Ele lutava para lembrar seu nome e depois
começava a chorar.
Numa noite qualquer, porque ele nunca sabia
dizer como o tempo passava, não distinguia os dias da semana ou a passagem dos
meses, tudo era igual quando se passava todo o tempo deitado, preso à uma cama,
ele escapou. Já era quase um rapaz quando ocorreu. Sonhou com a lua cheia,
enorme naquele céu escuro de Agosto. Acordou no meio do sonho e olhou fixamente
para a janela fechada que ele sabia existir por trás daquela cortina. O quarto
era um breu completo, mas ele a sentia, sabia que estava ali, chamando-o,
convidando-o a liberdade.
Um calor sem precedentes invadiu seu corpo.
Seu sangue parecia ferver nas veias enquanto o coração acelerou seus
batimentos. O menino que agora era quase um rapaz gritava com a dor que
irradiava de todos os seus membros. Sentia os ossos quebrarem e voltarem a se
unir para em seguida quebrarem de novo. Pelos nasciam em suas orelhas, pés e
mãos e começavam a se espalhar por toda a extensão do seu corpo. Os seus gritos
se tornavam mais altos e não mais se pareciam com nada humano.
Toda a raiva que ele sentia da mulher que o
aprisionara desde o tempo em que ele era capaz de lembrar estava prestes a ser
liberada. O gosto de sangue invadiu sua boca e se esvaiu rapidamente deixando
uma terrível sede. Novos aromas invadiam suas narinas que eram dilatadas
enquanto mandíbula a maxilar se projetavam para a frente e seus dentes se
convertiam em presas salientes.
Podia farejar a carne da velha mulher, ouvir
seu frágil coração descompassado e sentir junto a isso o doce aroma do medo.
Uivou saldando à lua e a fome assassina, recebendo aquilo que ainda não sabia
ser a sua maldição.
Quando acordou no dia seguinte estava deitado
sobre um túmulo. Seu corpo nu tremia coberto pelo orvalho da manhã. Assim que
conseguiu lembrar do seu nome procurou recordar de como havia chegado ali, mas
não conseguiu. Furtou roupas que estavam penduradas em um varal numa casa
próxima. Surpreendeu-se com a força e a saúde do seu corpo e jamais procurou
voltar para o lugar de onde havia saído. Passou a perambular pelas ruas e
mendigar por comida.
Durante um mês sonhou com a velha. Ouvia seus
gritos enquanto um lobo enorme saltava por cima dela e cerrava sua garganta com
os dentes. O sangue jorrava e suas mãos débeis tentavam, em vão, afastar a
criatura.
Encontrou outros jovens nas ruas e passou a
cometer pequenos furtos em sua companhia. Não falava muito, apenas ouvia o que
eles diziam. Havia passado tanto tempo calado que pensou não mais saber
conversar com quem quer que seja. A maldita velha quase roubara a sua
humanidade.
Perambulavam pelas ruas durante o dia e a
noite dormiam num prédio abandonado perto do ferro velho. Foi assim até a lua cheia.
O quase rapaz acordou nu novamente. Desta
vez, próximo a um rio. Não mais sonhou com a velha. Seu sono agora era
assombrado por garotos correndo. Seu choro rompia o silêncio da noite enquanto,
um a um, eram abatidos pela besta. Um lobo enorme, negro como as profundezas da
noite, sedento de sangue.
Aquilo o assustou. Mais uma vez ele teve de
se esconder até encontrar (roubar) novas roupas. Andando por uma cidade que ele
não conhecia e se perguntando como havia chegado ali soube o que era o
verdadeiro terror ao passar defronte a uma banca de jornal e ver a fotografia
dos seus companheiros. Ele nunca aprendera a ler, mas sabia que era uma má
notícia. O jornaleiro comentou com um homem gordo que comprava cigarros: “Nunca
vi nada igual. Que monstro seria capaz de estripar seis crianças?”.
Em seu íntimo ele soube.
Voltou para perto do rio e começou a falar
sozinho. Prestou atenção no som da própria voz. Era capaz de conversar com os
outros e tinha de ser capaz de aprender. Sentiu que merecia ser punido mas não
queria morrer. Ele não tinha culpa.
E o rapaz aprendeu. Cometeu pequenos furtos
que iam de relógios à bolsas femininas e carteiras. Não gastava muito dinheiro
nem ficava muito tempo no mesmo lugar. Escondia o dinheiro enterrado sob
árvores perto das estradas e todo mês mudava de cidade, sempre em direção ao
interior.
Todos os meses os sonhos mudavam. Sonhou com
um casal namorando em um carro, um zelador, um vigia noturno, dois adolescentes
puxando um baseado, um bêbado dormindo em uma rodoviária, uma linda jovem
chorando com o coração partido.
E o jovem se tornou homem. Um belo homem, de
corpo forte e atlético. Ele nunca adoecia ou se sentia cansado. Deixou de
roubar. Com o dinheiro comprou produtos que podiam ser revendidos de cidade em
cidade. Percebeu que precisava aprender a ler. Uma tarefa difícil, mas o
governo queria acabar com os analfabetos e toda cidade tinha um curso noturno
de letramento. Pessoas como o mínimo de instrução se candidatavam à vaga de
emprego de professor e não exigiam documentos daqueles que desejavam engrossar
o número de suas parcas turmas. E ele frequentou várias delas enquanto vendia escovas
de cabelo, óculos de sol, polidores de alumínio, perfumes baratos e fotos de
artistas famosos de porta em porta. Seus lucros aumentaram quando encontrou o
seu mais estrondoso sucesso: a Bíblia com capa de letras douradas e uma mensagem
do Pastor Daniel Collins, um famoso pregador do rádio. Citava as escrituras para donas de casa e
lhes dava o seu mais encantador sorriso regado ao brilho dos seus olhos azuis.
Vez ou outra dava a elas mais do que isso: um motivo para rezar pedindo o perdão
para sua luxúria.
Depois de muito pensar concebeu um meio de
fixar moradia. Escolheu uma pequena cidade do interior e com sua experiência
como vendedor se candidatou a um emprego numa fábrica local. Nas noites de lua
cheia ele sempre estava fora. Orientou suas ações pelo calendário lunar e
sempre se dirigia a lugares isolados. Ninguém chamava repórteres ou policiais
quando uma vaca ou uma ovelha eram estraçalhadas.
E o agora homem enamorou-se por uma bela
jovem chamada Elizabeth. Ela anunciou que estava grávida e a velha voltou a
atormentar seus sonhos.
_ A maldição vai adiante com a sua semente,
Michael. Ele matará sua mãe assim como você matou a sua.
O que
fazer? Ele procurou livros, buscou conhecimento, mas tudo que encontrou foi
folclore. Suas lembranças eram inconsistentes e vagas, gerando dúvidas e
interpretações: Onde estaria seu pai nunca conhecido? Será que o pai que nunca
conheceu tirou a própria vida? Ele
deveria cometer suicídio? E a criança? Como continuar seu segredo após o
nascimento de outro amaldiçoado?
Certa vez ouviu em algum lugar que o amor era
uma ilusão. Uma fantasia criada para embelezar o natural instinto de
preservação e perpetuação da espécie. As lágrimas que começaram a surgir em
seus olhos sumiram quando ele disse a si mesmo: A autopreservação supera a perpetuação.
Elizabeth dormia ao seu lado, exausta após
horas de amor intenso e selvagem, esboçando o sorriso dos que sonham com dias
felizes. Michael alugara a cabana por uma semana em nome do senhor Wilson
Smith, morto há dois anos. Estavam no alto da montanha, longe de tudo e de
todos. O sol estava se pondo e o céu ganhava um tom de laranja enquanto as
primeiras estrelas podiam ser vistas. Em breve a grande lua estaria no auge do
seu esplendor. Michael sentia vontade de uivar enquanto começava a salivar a
lembrança do gosto de sangue já começava a preencher sua boca.
Caetano, 03 de junho de 2012.
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